Minha experiência na ContaAzul

Aos 38 anos, aceitei o desafio de trabalhar na ContaAzul, uma startup com tecnologias de nuvem, que até então eram desconhecidas pra mim. Fiquei lá por 11 meses, de nov/2015 a out/2016. Fiz novas amizades, conheci o método de trabalho da nova geração (fail fast), comi bastante (comida livre!) e aprendi muito sobre AWS, Docker, CI/CD e práticas DevOps. Foi uma experiência incrível, e um grande upgrade na carreira. Vou contar um pouco dessa história.

Outubro de 2015. Estava eu lá, já há dois anos trabalhando como programador concursado na Prefeitura de Joinville. O turno de 6 horas me deixava com tempo livre, então eu pretendia iniciar um mestrado (lembra que fiz o POSCOMP?) para tentar saciar o insaciável desejo de aprender coisas novas, diferentes.

Eis que chega em meu email um convite para trabalhar na loucura agitada de uma startup local, a ContaAzul. A vaga envolvia o tipo de trabalho que hoje chamam de DevOps, que é uma mistura de administrador de sistemas e programador.

  • Beleza, eu sou ambos!
  • Sim.
  • Então tá tudo certo, certo?
  • Errado.

A parte de programação tudo bem, nunca parei de estudar e praticar. Mas na parte de administração de servidores, eu era um dinossauro dos anos 90 com seus servidores físicos, locais (“my precious”) que você instalava o CD do Linux e editava artesanalmente uma série de arquivos .conf até tudo ficar lindo. Parei no tempo e perdi a migração do mercado para as VMs e depois para a nuvem: Pet → Cattle.

A ContaAzul, como empresa moderna, era 100% na nuvem, sem servidores locais. E agora, José? 😱

Na entrevista deixei claro que eu não manjava absolutamente nada desse novo mundo, mas que tinha vontade de aprender. Concordamos em começar com um contrato temporário de 3 meses, onde eu aprenderia na prática, estudando e resolvendo os pepinos do dia a dia. Perfeito! Será o meu “mestrado”, além de uma atualização de carreira.

Mas e a prefeitura?

Não deixei a prefeitura, então fiquei com dois empregos. Reduzi minha carga horária (e meu salário) na prefeitura para 4h (das 7 às 11) e na ContaAzul trabalhava mais 6h (das 13 às 19). Foi cansativo bagaraio, mas valeu a pena. 👍

Trabalhar em “startup”

Eu estava com umas ideias de ir pro exterior e trabalhar numa dessas empresas modernosas, para conhecer o clima de startup e aprender tecnologias de ponta. Nem precisou. No fim, a ContaAzul era uma empresa aqui da minha cidade, que tinha exatamente essa experiência para oferecer.

E não decepcionou.

Os itens esperados da checklist de “empresa cool” estavam lá: ambiente bem informal (puffs, paredes rabiscadas, post-its coloridos por toda parte, roupas bizarras, pantufas, decoração temática, música alta, festas), brinquedos (video game, ping pong, skate, bateria, nerf gun), comida e bebida à vontade, horário de trabalho flexível (sem ponto), e muita gente jovem.

Por falar em idade, eu era um dos “top 5” funcionários mais velhos da empresa. Isso numa empresa de 200+, pensa! 😱

A máquina de trabalho era um notebook (plugado a monitor e teclado externos quando na mesa), o que garantia mobilidade total para ir até a mesa do colega e juntos resolver os problemas, codando ao mesmo tempo. Ou ainda, passar a tarde no refeitório (chamado de “lounge” por quem é mais cool do que eu), programando enquanto come até enjoar as guloseimas da cozinha. Ou programar no puff, no sofá, no chão... Eu sou mais conservador e saía pouco de minha mesa. Mas percebia que o pessoal mais novo adorava mudar o local de trabalho com frequência.

A comida à vontade é uma coisa muito boa. Foi a primeira vez que trabalhei em um lugar assim e gostei bastante. A qualquer momento que bate aquela fome, ou aquela vontade de dar uma espairecida, era só ir até o refeitório e se servir, sem limites. Tinha água, refrigerante, suco, café, cerveja, iogurte, Yakult, granola, bolachas (várias), salgadinhos (Cheetos), doces (paçoca era meu preferido), pão, queijo, presunto, geleias, e vários tipos de frutas. Cozinha bem equipada, que o pessoal usava pra preparar sanduíches, vitaminas, e lanches mais elaborados. Era frequente rolar algum lanche especial, feito pelas moças responsáveis pela limpeza, como: cachorro quente, bolo, pipoca e torta. Desnecessário dizer que é fácil engordar lá se a pessoa não for controlada 😋

Havia uma equipe de limpeza, mas a regra era que cada um limpasse tudo aquilo que sujou na cozinha e refeitório. No geral, funcionava.

Houve várias festas temáticas na minha estadia por lá. A maioria já vinha fantasiado desde casa, e passava o dia trabalhando daquele jeito. Bem divertido ver vários personagens transitando pela empresa, fazendo seu trabalho normalmente. A festa mesmo começava à tarde, perto do fim do expediente e seguiam noite adentro até... Não sei que horas, pois nunca fiquei até o final 😬 O pessoal era bem animado e o clima das festas era legal, divertido, sem chinelagem.

Uma foto publicada por ContaAzul (@contaazul) em

O horário era flexível, sem ponto de entrada/saída. Durante o expediente, cada um era livre para trabalhar como e quando quiser, sem cobrança. Está estressado? Vai lá e fica meia hora jogando ping pong. Ou vai no refeitório e fica comendo e batendo papo com os amigos. Ou vai tirar uma soneca no puff. Ou chama os colegas pra jogar um Counter Strike, Age of Empires... Era bem comum o pessoal ficar trabalhando depois do horário. Tem dia que trabalha a mais, no outro a menos, e assim vai, cada um cuidando do seu próprio tempo.

Uma coisa que eu gostava era que toda a sexta-feira tinha uma reunião geral com todos os funcionários, que durava cerca de uma hora. Nela, o CEO (e outros líderes) expunham de maneira transparente os números da empresa, se estava indo bem ou mal, quais eram os próximos desafios, essas coisas. Também havia espaço para perguntas, onde o funcionário podia expor suas dúvidas, preocupações e ideias, ali na frente de todos. Gostei bastante desse formato e de poder ter essa dose semanal de notícias mais globais da empresa, saindo um pouco da “bolha” nerd ali do dia a dia.

Claro que nem tudo são flores. Infelizmente, tem gente que não sabe lidar com toda essa liberdade e abusa. Tinha os porcalhões que não limpavam sua sujeira no refeitório ou que deixavam o banheiro sujo. Tinha os que deixavam as salas de reunião bagunçadas. Tinha os fumantes que jogavam suas bitucas no jardim. Tinha os babacas que estacionavam de maneira não civilizada. Enfim, humanos. Sempre estragando o que é bonito. Mas isso era uma pequena parcela, no geral o saldo era bem positivo e o clima interno era muito empolgante!

Se quiser saber mais sobre o ambiente de trabalho, dá uma olhada lá nas fotos do Facebook e do Instagram da empresa.

Todo esse ambiente informal e divertido me lembrou muito de minha época na Conectiva, pois lá também era assim. Só não tinha a comida livre, mas de resto era similar. Detalhe que isso foi há 20 anos atrás, em 1997!

Aprendiz aos 38 anos

Como já comentei, eu cheguei lá sem saber nada das tecnologias que eles utilizavam.

Imagina um cara “das antigas” numa empresa moderninha 100% na nuvem.

Foi bem interessante essa experiência de chegar “virjão” e ser um total iniciante. Todos da equipe já eram experientes em nuvem, e eu era o perdido, o aprendiz, o estagiário. Tudo eu tinha que perguntar, descobrir o que é, pra que serve, que problema resolve, como funciona, e aos poucos ia construindo uma base de conhecimento nova. Levei meses para começar a ficar à vontade.

Mesmo ainda sendo um girino na nuvem, ganhei acesso de administrador em produção já no primeiro dia de trabalho! Ah, que diferença das mil regras de acesso da prefeitura... 🤠

O primeiro login na AWS foi um choque. Uma tela que listava um milhão de serviços, com seus nomes e siglas estranhos, que não me diziam absolutamente nada. Tipo ir visitar a cabine do avião e ver aquele mundo de botões e instrumentos. Nada se destaca, tudo é parecido e desconhecido.

Outra coisa nova pra mim era a prática de CI e CD (integração e entrega contínuos), que fazia com que um commit no GitHub fosse empacotado, testado e publicado automaticamente. Nunca tinha lidado com isso e demorei para entender todas as pecinhas que faziam a mágica funcionar. Algumas delas: Jenkins, Travis, Puppet, Docker, APIs da AWS e diversos shell scripts pelo caminho.

Aliás, a única coisa que já me era familiar nesse novo ambiente era o Linux e o bom e velho shell script, que ainda estava lá, firme e forte servindo mais uma geração. Ele continua indispensável e agora gruda todas as peças dessa engenhoca cloud. Além dos vários scripts internos, também tinha uns shell scripts camuflados dentro de determinadas ferramentas, como no Dockerfile ou no arquivo YAML do Travis CI.

Inspirado por essa nova realidade do shell, e com a experiência de trabalho na ContaAzul, fiz a palestra Shell Script Moderno.

Conflito de gerações?

  • E aí, como é ser um quase quarentão trabalhando no meio da molecada de 20 e poucos anos?
  • Foi supimpa! 👴

Antes de começar lá, tive receio de ser o “tio da Sukita”, deslocado no meio da gurizada. Mas não foi nada disso. Me receberam muito bem desde o início, me incluindo nas atividades, nas histórias e claro, nas zoações. Afinal, zoar e ser zoado é a parte mais importante do convívio social sadio no trabalho 😂

Que eu me lembro, foram dois pontos que percebi uma diferença significativa entre gerações.

1. Jeito. Falar. Blz. Flw.

Eles falavam rápido e com frases bem curtas, sem contexto e sem muitos detalhes, num ping pong frenético. Igual às conversas de Whatsapp: vários pequenos balõezinhos seguidos, com frases e palavras soltas, em vez de um parágrafo completo.

No começo tive dificuldade de entender e acompanhar o ritmo. Eu tinha que interromper o fluxo para perguntar sobre o que estavam falando, pedir mais detalhes. Depois de um tempo acostumei...

2. Testar antes ou arrumar depois?

Aqui foi mais evidente a diferença. Eu sou super cauteloso, penso bastante antes de fazer, testo tudo e só faço commit quando tenho certeza que está tudo OK. Demora para sair, mas em geral funciona e não precisa corrigir depois.

A cultura local era o oposto: faz vários commits rápidos em sequência e publica logo, depois arruma os problemas conforme eles vão aparecendo. Era comum usarem a própria interface web do GitHub pra editar os arquivos mais rapidamente.

Apesar da diferença, não teve estresse, pelo contrário, nos zoávamos.

Com o tempo, achamos uma combinação que funcionou bem: eles continuavam em velocidade máxima fazendo as alterações e eu atuava forte no code review para encontrar os erros no código antes que eles fossem pra produção. Assim conseguíamos velocidade e qualidade ao mesmo tempo.

Sim, eu era o chato do CR! Além de achar bugs, também enchia o saco deles com coisas que considero importantes como: erros de português e inglês, alinhamento e beleza de código, nomes de variáveis e métodos, falta de comentários e até quando não respeitavam a ordem alfabética 🤓

Após viveciar esse ritmo agitado durante quase um ano, consegui me desprender um pouco e fazer as coisas mais rápido, sem tanta lambeção. Eles também passaram a prestar mais atenção aos detalhes, produzindo um código melhor. Foi um ganha-ganha.

Vivendo em dois mundos

O mais louco era diariamente transitar entre dois mundos opostos: de manhã funcionário público estável na prefeitura e de tarde DevOps iniciante na ContaAzul.

  • De manhã era o mundo da burocracia, separação rígida entre equipes, softwares estáveis e legados, com alterações previamente testadas em homologação e aprovadas pelo requisitante. Faz-se de tudo para evitar que a falha chegue em produção.

  • De tarde era o mundo novo, instável, onde tudo acontece muito rápido, equipes são formadas dinamicamente pra atacar um problema, há diversos deploys por dia e tecnologias são adotadas e descartadas sem muita cerimônia. Tem sempre algo quebrando em produção, mas é rapidamente consertado ou feito rollback.

Na minha experiência vivenciando isso, os dois métodos de trabalho funcionam, não tem melhor ou pior. Cada um encaixa melhor num tipo de empresa e de funcionário. A prefeitura é um órgão público com funcionários já mais velhos e precavidos, a ContaAzul é uma startup com uma molecada cheia de gás e sem freio.

Eu notei que o que mais me cansava nessa dupla jornada não eram as 10 horas diárias de trabalho (afinal, isso sempre foi rotina quando eu trabalhava em casa), mas sim o chaveamento intelectual de ter que entrar no “modo prefeitura” de manhã e depois do almoço mudar para o “modo startup”. Além da diferenças tecnológicas e de metodologia de trabalho, também tinha a diferença de sistemas operacionais (Windows e Linux) e de teclados (ABNT e US Internacional). Fim do dia eu já estava zuretão, confundindo tudo. A cabeça doía.

Alguns dias ainda tinha a terceira jornada onde eu precisava chavear para o “modo escritor”. Pensa num cara que já nem sabia mais o que estava fazendo :)

A saída

Por mais que eu estivesse feliz na ContaAzul, pelo trabalho e pelas amizades que lá fiz, depois de 11 meses de uma rotina de dois empregos, trabalhando 10 horas por dia, eu estava bem cansado.

Com a gravidez da Mog, minhas prioridades mudaram. A barriga ali crescendo, e eu senti que devia desacelerar, trabalhar menos e ir me preparando para iniciar o “modo pai” e curtir o filho que estava a caminho.

Pedi demissão na ContaAzul e voltei ao meu horário normal na prefeitura, de 6 horas. Fim de um ciclo.

Legado para a prefeitura

O órgão público em geral é visto como algo defasado tecnologicamente. Há vários motivos que tornam as mudanças mais difíceis e demoradas de acontecer nesses ambientes. Felizmente, na TI da Prefeitura de Joinville temos liberdade para estudar, propor e implementar novidades que melhorem o ambiente e os procedimentos. Essa é a minha atividade preferida!

Já usávamos o GitLab internamente como repositório de todos os softwares que desenvolvemos e damos manutenção, e praticávamos code review por meio de Merge Requests. Essa parte estava legal, mas o deploy ainda era feito manualmente pelo desenvolvedor com um git push prod e o rollback era... corram para as colinas! 😱

Com a experiência de trabalho na ContaAzul e o que aprendi lá, pude trazer para a prefeitura algumas novidades que mudaram nossa maneira de trabalhar. Uma foi o uso do Slack para comunicação interna e notificações, praticamente acabando com o envio de emails entre a equipe. Mas o mais legal foi implementar o uso de contêineres Docker e criar o processo de CI/CD para padronizar e automatizar o build, testes e deploy/rollback em todos os ambientes (homologação, treinamento, produção).

E a nuvem? Tá lá no céu, oras. Não sabe que em Joinville chove bastante? 🤡

Agradecimentos

Tenho muito a agradecer aos meus chefes e colegas de trabalho, que tornaram possível essa minha aventura nerd.

Aos meus chefes na prefeitura (coordenador Charles Furghestti, gerente Edson Lopes e diretor Filipe Schüür) pela compreensão, apoio e permissão de diminuir minha carga horária para que eu pudesse ter um segundo emprego. E olha que eu ainda estava em estágio probatório!

Ao meu chefe na ContaAzul (Matheus Rossato) que topou contratar um leigo em nuvem e me deu essa incrível oportunidade de aprender na prática tantas coisas legais.

Aos meus colegas de trabalho ninjas da equipe BlackOps da ContaAzul (Luiz Müller, Carlos Becker, Jonathan Beber) que tanto me ensinaram o tempo todo, com paciência, cordialidade e bom humor. Três caras muito fodas, nível técnico mundial, além de bons amigos.

E claro, um agradecimento super especial à minha amada Mog ❤️, que como sempre, dá seu apoio incondicional às minhas empreitadas.

— EOF —

Gostou desse texto? Aqui tem mais.